PSICANÁLISE E MITO
É função da mitologia assegurar uma espécie de genealogia, de reconstruir com as palavras a questão sempre irresoluta da origem. O mito é o que dá forma épica à estrutura, fazendo entrar na linguagem aquilo que nela escapa, como um modo de colonizar essa hiância.
Todo mito encarna algo da ordem do Real, indizível por outras vias, pois a palavra do mito conserva um valor peculiar para transmitir sentidos que o logos não compreende. Como se apesar de todos os esforços do logos, somente o mito conseguisse tocar algo do Real pois, uma vez submetido definitivamente ao sistema da linguagem, o sujeito é obrigado a levar em conta este buraco na estrutura. É assim que também coletivamente, os mitos são forjados, quase que forçando a entrada deste buraco na linguagem, o que encerra a radical impossibilidade de uma congruência entre o mundo das coisas e o mundo das palavras. (Sperling, 1995)
Temos razões mais do que suficientes, razões necessárias, para reconhecer todo o apreço de Freud pela função do mito, não apenas na sua prática clínica de escuta e deciframento dos romances familiares de seus pacientes, mas também no âmbito de sua teorização metapsicológica, cujo trabalho se origina do mito. Da mesma forma, assistimos em Lacan a uma insistência pela retomada da experiência do mito a partir de uma articulação estruturalista, denominando por mito o cenário fantasístico central da neurose.
Freu opera uma desmitificação dos mitos, por mais paradoxal que seja o uso desta expressão neste caso. Sim, porque desmitificar implica uma conotação de valor negativo ao mito, como algo que tratasse de anular e condenar o mítico. Não é preciso ir muito longe para lembrar o quanto na linguagem comum a palavra mito aparece como sinônimo de mentira, irrealidade, engano, enfim, toda uma série de expressões que aludem ao caráter maligno do mito, como mitômano, por exemplo. Além disso, temos também o uso do mito como referência a um elemento próprio de uma etapa infantil e superada definitivamente da humanidade ou, ainda, como uma atribuição ingênua de poderes à natureza divinizada e que será desmentida pela ciência que pretende trazer a luz da verdade. (Sperling, 1995)
A desmitificação do mito realizada pela psicanálise, como também pela antropologia, pela literatura ou mesmo por algumas vertentes da filosofia, resgata com justiça a dignidade do mito que a razão Iluminista, sobretudo, condenou ao inferno da obscuridade. Felizmente essas disciplinas restituem ao mito seu caráter fundante, sua riqueza de sentido e sua pregnância simbólica. Para os gregos antigos não havia oposição entre mito e logos, tampouco entre mito e história, sendo interessante lembrar que a História, como disciplina que se conserva até a modernidade, nasce justamente na Grécia (Sperling, 1995). Toda história parece necessitar de um mito em sua origem e as narrativas dos mitos veiculam concepções de tempo e falam de diferentes modos dos personagens que protagonizaram essas origens, sem um abismo definitivo entre esses elementos que permaneceram como estruturas aceitáveis.
Entretanto, dois marcos foram determinantes para que o mito cedesse seu reinado a outro tipo de relato e a outra forma de compreensão do mundo: um com o advento do discurso platônico que estabelece a diferença entre epistheme e doxa , introduzindo também o conceito de verdade e a exigência de que todo conhecimento autêntico tenha que dar conta de seus fundamentos, lançando com isso as bases para o domínio da razão a qual deverá estabelecer as regras de validade de todo saber. O segundo marco, ainda que anterior no tempo, foi a revolução monoteísta do judaísmo e a fé num Deus único, inominável e irrepresentável, criador ex nihilo e, portanto, não encarnado na natureza, mas fabricante dela (Sperling, 1995). Enquanto o mito indica o Real indizível no registro do imaginário, a Torah, a Lei, a palavra, impõe definitivamente a ordem simbólica. O imaginário, plano onde se aspira ao retorno de uma ilusória unidade primordial - à mãe, ao incesto -, não desaparece, mas é a Lei do Pai que, ao estabelecer a interdição, instaura a definitiva impossibilidade do imaginarizado e a mudança dessa aspiração para o registro simbólico.
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